sábado, 4 de junho de 2011

Na Cama com um Fantasma

Quase quarenta anos como psicanalista e “nada do que é humano me é estranho”. Como? Alguém já disse isto? Calma! Não posso fazer um empréstimo? Se antes era esquisito, hoje sou o primo do ET. Minha mulher me largou há cinco anos. Claro, não me aguentou.
Final de sexta-feira, doido por uma cervejinha gelada, entra em meu consultório uma quarentona, baixinha, gordinha, solteira, parecendo uma ex-hippie.
-Tudo bem?
-Preciso de sua ajuda, doutor. Estou apaixonada por um...homem.
-E então? É casado? Gay?
Ela é funcionária pública, desabitada, fumou muito “baseado”.
-Mas só “baseado”, doutor. Andava muito só, doutor. Sem amigos, sem família...pensei: quem sabe consigo conversar com os mortos.
Montei o circo: vela, incenso, toalha branca ...
-E daí?
-Nada. Parei de fumar maconha. Talvez as entidades não suportem ilegalidades.
-E?
-Mesmo sem aparecer ninguém, comecei a curtir aquele ritual. Até que um dia...
Que agonia, my God!
-Um dia, doutor, entra um ser baixo, gordo, os cabelos, puro desalinho. Conheço este olhar que me mete medo.
Comecei a acompanhar o caso porque achava divertido e confesso, estava curioso.
-O fantasma, doutor, ficou sentado e calado. Contou que é alemão.
Não me pergunte como, cara, mas eles se entendem. Todos os dias ele aparece à mesma hora, no mesmo “bat lugar”.
-Doutor, quando viu meu velho piano de família, ficou emocionado. Tocou. Tocou-me. Tocou a toda vizinhança!
São íntimos, rapaz.
-Um dia insisti tanto que revelou sua identidade. É por isso que estou aqui, doutor. Coitado! Pensa que é Beethoven.
Imagine a encrenca. A princípio, penso que ela, Mariana é a paciente. Virei psiquiatra de fantasma, além de tudo psicótico: pensa que é Beethoven. E o que é pior: ele me convenceu. Só pode ser Beethoven o tal de fantasma e eu, um psiquiatra doido. Acredite, ela me convenceu. Fui a casa dela para tratar a alma sofredora. Não sendo médium, não o vejo, não o escuto, mas juro, cara, vejo as teclas do piano tocando sozinhas e fico arrepiado de medo. E a beleza da música me surpreende.
A surdez de Beethoven? Essa foi sua redenção – após a morte, voltou a ouvir.
Apaixonadíssimos, Mariana e o Fantasma, aqui, já com F maiúsculo. Ele quer tocar Mariana e me torno veículo e o incorporo e por ele, faço amor com Mariana. Logo eu, incrédulo em outra vida, morrendo de medo, recebo o Beethoven. Tudo pelo paciente.
Ele é um romântico, pura libido. Fazemos, assim, amor a três. Que cumplicidade!
A partir de então, nunca mais me preocupei com rótulos, definições, limites, tudo o que aprendi, inclusive a ética que mandei “pras cucuias” e só penso em viver. Sou bissexual, psicótico? Talvez. Dane-se. Casei com Mariana.
Se pensar muito, assino minha própria guia de internação. Até aqui, fui pura racionalidade. Hoje sou só ensaio.
Há pouco, tirava gente da loucura, esvaziando-as de seus sonhos e potências.
Somos paixão: Mariana, eu e Beethoven. A vida conspira a nosso favor. Casamos. Mariana nunca foi tão sedutora e mulher, conforme ela mesma relata. Um garanhão nasceu em mim, quando achava que a impotência me arruinara. Fantástico Fantasma, Beethoven, dele nunca tento subtrair essa massa informe de sentimentos cristalizados e caóticos, mola propulsora de toda criação. Continua imenso na música. Você acha que vou tentar apaziguá-lo? Como comporia a Nona Sinfonia sem este amor sem fronteiras?
Sintonizamos Beethoven com a atualidade. Na dimensão em que vive, não é fácil metabolizar o binômio cruel que a morte nos tira, espaço-tempo.
Quando triste, sua música nos sensibiliza. Nos momentos de maior contato e ternura, explodimos os três num êxtase desumano.
Somos felizes na cama com Beethoven!

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